Eliana Machado Coelho é paulista, nascida na capital do estado bandeirante, em 09/10. Desde pequena esteve em contato com o Espiritismo, amparada por pais e avós amorosos. Estudou a Doutrina Espírita, tendo realizado muitos treinos de psicografia sob orientação de sua mentora espiritual, Schellida. Há claramente um projeto literário orientador do trabalho das duas: “o que sempre deve prevalecer é o conteúdo moral e os ensinamentos transmitidos em cada livro”.
Por este projeto deve se entender que o gênero textual romance – narrativa montada sobre vários núcleos dramáticos – é apenas um modo mais palatável para apresentar conteúdos. No presente caso, conteúdo espírita. Afinal, não são todos os leitores que desejam se debruçar sobre longos estudos e dissertações sobre a Doutrina. E não há qualquer demérito nessa disposição. As pessoas têm suas próprias definições e expectativas.
Não é o primeiro livro da dupla Eliana/Schellida que leio; nos três trabalhos lidos anteriormente, houve uma motivação muito forte, de minha parte, para a leitura. Sempre as escolho com muito critério: gasto tempo na livraria, leio o índice, a quarta capa, introdução se houver; folheio o livro, pinçando aqui e ali alguns trechos. Existem, nas narrativas da dupla afinada, algumas coisas às quais dou muita importância. Consonância com as bases da Doutrina Espírita (afinal, são livros espíritas, não é mesmo?), propostas à reflexão e ensinamentos.
Mais forte que nunca é um livro causador de polêmica, mesmo no meio espírita. É que ele aborda o delicado tema da homossexualidade à luz de uma análise desapaixonada, oferecendo-nos a compreensão espírita dos fatos. Tenho constatado a condenação da homossexualidade e dos homossexuais às penas do inferno por confrades espiritista, inclusive em palestras. Falta de reflexão, pesquisa, estudo.
Abner é um arquiteto, 35 anos, bem resolvido e que decide assumir sua orientação sexual: ama Davi, seu companheiro. Tal atitude causa, como é comum, reações diversas das pessoas da família de Abner. Rúbia, sua irmã, não aceita sua preferência; Simone, irmã mais velha, já é mais compreensiva; a mãe, Celeste, não compreende sua opção, embora tivesse percebido, desde cedo, haver qualquer coisa diferente com o filho – ela o ama e não o condena. Entretanto, o pai, Sr. Salvador, é intolerante. Não é apenas a homossexualidade que condena, sua revolta é contra o mundo atual, contra as pessoas que agem diferentemente dele: aposentado, deixa estagnar sua mente, é mal resolvido consigo mesmo, de mal com a vida.
E, de repente, o mundo parece-lhe sair fora do lugar: Rúbia relaciona-se com um homem casado, do qual engravida. Simone constata que seu bebê, tão ansiosamente esperado, tem a Síndrome de Patau – um defeito no gene 13, um caso de trissomia.
Por trissomia entende-se uma anomalia durante o processo genético em que os cromossomos deveriam se dividir corretamente. Os seres humanos têm 46 cromossomos, sendo 23 da mãe e 23 do pai, a serem combinados na fecundação e darem origem a um filho dito normal. Na Síndrome de Patau, o gene 13 não sofre essa natural divisão, indo com as duas partes fazer parte do óvulo materno; vai se combinar com outro gene 13, fornecido pelo espermatozóide, daí a trissomia, causadora de vários problemas. Vão desde a malformação do palato (a criança nasce sem o céu da boca), deformações nos olhos e orelhas. Podem nascer mortos ou terem pouco tempo de vida. O marido de Simone, Samuel, não consegue suportar a ideia de um filho assime se afasta da mulher grávida.
A família de Davi também tem seus problemas. Embora Janaína seja espírita e portadora de maiores esclarecimentos, aceitando bem a orientação sexual de seu filho mais novo, Davi, vive um drama com o mais velho, Cristiano: recuperado fisicamente de um acidente de carro, no qual perdera a noiva Vitória, tem ainda sérias repercussões psicológicas.
A tese central do livro é uma verdadeira paulada no preconceito contra a homossexualidade. Ela é natural como a heterossexualidade. Não é uma opção, não é uma doença, não é sem-vergonhice (como a caracteriza o Sr. Salvador). Faz parte da obra de Deus. E a argumentação de Schellida, pela boca do personagem Cristiano, irmão de Davi, é consistente:
“A intolerância e o preconceito têm origem na ignorância. A verdade é que há um amplo grau de contraste entre a extremidade do masculino e feminino. A variação de gênero existente entre os seres humanos não é aberrante, anormal ou antinatural. Faz parte da Natureza. Nós estamos vivendo entre seres que vão além, muito além da tradicional categoria de macho e fêmea. O senhor sabia que há plantas hermafroditas ou intersexuais? – o homem não respondeu e Cristiano continuou: – Além de inúmeros animais que apresentam comportamento homossexual como girafas, pinguins, baleias, chimpanzé, golfinhos e outros. Milhares de seres a nossa volta são hermafroditas, ou seja, são intersexuais, possuem os dois órgão sexuais masculino e feminino. Crustáceos marinhos,chamados de cracas, que vivem presos em rochedos e em cascos de embarcações, são animais em que 97% são intersexuais.” (página 273)
A algumas páginas mais adiante, o Sr. Salvador questiona se os homossexuais deveriam “sublimar” o sexo, não o praticando. “Isso depende de cada um. Em minha opinião, entendo que a relação sexual é um processo, é o ato que garante a reprodução das espécies. Como estamos falando da espécie humana, devemos entender que o ato sexual é o mecanismo responsável pela variabilidade genética e contínua da espécie e, consequentemente, a sobrevivência da raça humana. Se a relação sexual devesse, obrigatoriamente, ser usada somente para fins reprodutivos, conforme alguns dizem ser essa a vontade de Deus na passagem bíblica: crescei e multiplicai, então os heterossexuais também deveriam se abster do sexo, não praticar o sexo quando não fosse com a finalidade exclusiva de procriar.” (página 279)
O romance procura traçar as possibilidades de realização da sexualidade humana e nos diz que há os heterossexuais, os homossexuais, os bissexuais e até mesmo os assexuados (não gostam de sexo e podem passar a vida toda sem praticá-lo).
Schellida nos lembra, em determinado trecho, que “A Doutrina Espírita, na sua codificação, não é preconceituosa e praticamente não se manifesta a respeito disso. Lembra que espírito não tem sexo e podemos encarnar homem hoje e mulher amanhã. A Doutrina Espírita defende a tese de que quanto maior a evolução de um espírito, mais aproveitamento ele teve nas experiências vividas. Isso indica experiências como homem e mulher, sofrendo conflitos, harmonizando suas práticas em diversas vidas, em incontáveis provas, exercícios, tentativas, ensaios e tudo o que Deus nos colocar à disposição.”
A obra basilar do Espiritismo é O Livro dos Espíritos, obra que se alonga em 1018 perguntas, organizadas por Allan Kardec e respondida pelos espíritos envolvidos na codificação da Doutrina. É bastante oportuno transcrever aqui o que nos diz as questões de número 201/202, livro segundo, capítulo IV:
“201.O Espírito que animou o corpo de um homem pode animar o de uma mulher, numa nova existência, e vice-versa?
- Sim, pois são os mesmos Espíritos que animam os homens e as mulheres.
202. Quando somos Espíritos, preferimos encarnar num corpo de homem ou de mulher?
- Isso pouco importa ao Espírito; depende das provas que ele tiver de sofrer.”
Logo a seguir, há um elucidativo comentário de Kardec:
“Os Espíritos encarnam-se homens ou mulheres, porque não têm sexo. Como devem progredir em tudo, cada sexo, como cada posição social, oferece-lhe provas e deveres especiais, e novas ocasiões de adquirir experiências. Aquele que fosse sempre homem, só saberia o que sabem os homens.”
Se você, querido leitor ou querida leitora, gosta de ler obras espíritas, não perca a oportunidade de ler uma boa trama, escrita de maneira competente, fiel aos princípios espiritistas. Além disso, você leva para casa boas reflexões sobre um tema delicado e atual. Quem sabe, nos tornamos (eu me incluo entre estes) um pouco menos preconceituosos? Boa leitura!
Eliana Machado Coelho, espírito Schellida. Mais Forte Do Que Nunca. 1ª edição. São Paulo, SP: editora Lúmen, 2011.