“Na úmida e enevoada Londres, mais um dia de outono se erguia, apontando aos moradores da mais importante metrópole europeia da época que o inverno que logo chegaria não diferiria dos anteriores. Os transeuntes envergavam pesadas roupas, pois, mesmo que as temperaturas ainda não houvessem despencado, um gelado vento cortava a cidade proveniente do Tamisa.
As dificuldades impostas pelo clima têm o poder de moldar os hábitos e as personalidades das pessoas. Os habitantes de regiões onde o sol aparece poucas vezes parecem trazer ares mais sombrios, talvez contagiados pelas próprias nuvens que quase sempre desfilam sobre suas cabeças. O frio exige alimentação mais calórica e torna seus habitantes de complexão robusta, ao mesmo tempo em que o trabalho, recurso que os ares gelados também parecem estimular, torna-se compromisso moral da população. Estranho como o clima age sobre o caráter de uma nação. Torna o povo mais sério ou galhofeiro.
A capital inglesa do início do século XX trazia seus ares aristocráticos, impulsionada pelo desenvolvimento industrial em franca expansão, impondo-se ao mundo como potência econômica e social. Assim como em séculos anteriores outras nações influenciaram os hábitos e costume social, chegara a vez da famosa ilha, além do Canal da Mancha. Grandes corporações financeiras ali tinham sua sede, o comércio mundial dependia do aval inglês. Seus braços se estendiam às colônias na América, África e Ásia. Em resumo, manter-se atualizado significava à época conhecer do que tratavam os ingleses.” (páginas 9/10)
Assim tem início a história contada na obra O testemunho dos sábios, de frei Felipe e psicografia de Rafael de Figueiredo. Em poucos parágrafos, como se pode constatar acima, toda a contextualização inicial da narrativa está delineada. Nesta Inglaterra irão se movimentar os nossos personagens.
Edouard Smith é um médico, inteligente e perspicaz. Casado com Elizabeth Clarkson, de uma tradicional família inglesa. Culta, além de falar francês fluentemente, estudara canto e piano e participava de diversos saraus familiares. O casal reside numa boa casa, onde a empregrada Gladys lhes servia.
Elizabeth tem a atenção chamada para a leitura dos tabloides circulantes à época, nos quais as notícias das reuniões mediúnicas vêm ao encontro da curiosidade popular.
Edouard é cético quanto ao assunto, e critica os estudos de François Marie-Gabriel Delanne e Charles Robert Richet – cientistas conhecidos então – sobre os fenômenos espirituais inexplicáveis pela ciência estabelecida.
Rupert Stewart, bem mais velho que Edouard Smith – e, como este, médico – tem pelo companheiro de profissão uma amizade intensa, no que é correspondido. Trabalham os dois no mesmo hospital. Não sabem ainda, mas essa amizade desenvolvida tão de pronto vem de reencarnações passadas e terá um papel primordial no futuro do jovem médico.
Fundamentais também serão John e Clara Robertson, incansáveis pesquisadores do que realmente acontece naquelas estranhas reuniões, nas quais o “sobrenatural” se manifestava.
Edouard é médium ele mesmo, e logo começam as manifestações fenomênicas por seu intermédio. Entretanto, seu ceticismo é duro de vencer:
“Atônito, sem saber o que fazer, Edouard sentiu certo receio. O que acontecia? Lembrou-se que já sentira impressões estranhas em sua primeira participação em uma sessão mediúnica. Estaria sendo vítima de um fenômeno mediúnico? Sentia-se chumbado à poltrona, todo seu corpo parecia dormir, entretanto, seus pensamentos se manifestavam em todo seu vigor. Sua lucidez parecia aclarada. De súbito, ouviu pancadas surdas, que estalavam e produziam ruídos em todos os lados da sala. Parecia que alguém oculto batia nos móveis e paredes.
Ele estava bastante impressionado, parecia que os Espíritos estavam decididos a convencer o jovem médico de uma vez por todas. Após as batidas, passou a lutar contra a sensação que o dominava. Desejava que isso parasse. Sentia-se constrangido e com medo. As batidas se fizeram ouvir mais uma vez, dessa vez na parede atrás de sua poltrona.”
A partir da realidade dos fatos, o médico começa a estudar mais a fundo sobre tais eventos, compulsando os livros de Allan Kardec. Pouco a pouco, rende-se às evidências; espíritos de pessoas amadas, já desencarnadas, comunicam-se com ele.
Sua vida sofre diversas reviravoltas, ganha um mentor de nome Mariano; sua vida tem de ser refeita; explode a Primeira Guerra Mundial:
“Estava escrito com letras garrafais: Inglaterra está em Guerra. O texto da capa tomava todo o jornal. As alianças que vinham sendo contraídas ao longo dos últimos anos foram colocadas em ação. Inglaterra, França e Rússia declararam guerra ao Império Austro-Húngaro, acompanhado do Império Alemão e Otomano. Breve outras nações se agitariam no campo de batalha.
O assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando provocou uma reação do Império Austro-Húngaro, que decidira anunciar guerra contra os Sérvios um mês após o atentado. Faltava o pretexto, pois sempre há interesses econômicos e políticos velados por detrás das guerras. A Rússia reagiu e mobilizou armas para defender a Sérvia. França e Alemanha anunciam apoio aos seus aliados e mobilizam-se.” (página 334)
O conflito de escala mundial terá interferência direta na vida de Edouard e dificultará sobremaneira as constantes pesquisas e investigações sobre as atividades espíritas:
“Para o Espiritismo, a guerra trouxe repercussões negativas, visto que conseguiu desconstituir um movimento criterioso e de vigor incalculável para a afirmação dos ideais espíritas. Uma visão científica do Espiritismo marchava a passos largos na Europa Ocidental, equiparando-se à visão eminentemente religiosa, que se desenvolveu mais tarde no Brasil. O pilar racional da Doutrina dos Espíritos sofreu profundo revés com a explosão de ambas as guerras mundiais.” (página 430)
Na verdade, muitos dos personagens envolvidos nesta trama são espíritos de uma reencarnação passada, na França, cujas vidas e ações já haviam sido abordadas no livro anterior, Do século das luzes, de autoria do mesmo frei Felipe, com psicografia de Rafael de Figueiredo.
O testemunho dos sábios é magnificamente escrito, com claríssima intenção de historiar os primórdios do Espiritismo. As informações são dispostas de maneira a conduzir o interesse do leitor, enquanto lhe são ministradas informações basilares, tanto no próprio corpo do texto, como nas notas de pé de página. É uma leitura extremamente proveitosa, mesmo para aqueles apenas simpatizantes das ideias espíritas, mas degustadores de dados históricos e que desejem saber algo mais a respeito da doutrina dos espíritos.
FIGUEIREDO, Rafael de; espírito frei Felipe. O testemunho dos sábios. Boa Nova editora.Catanduva, SP: 2014.
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