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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O testemunho dos sábios, de Rafael de Figueiredo/frei Felipe

“Na úmida e enevoada Londres, mais um dia de outono se erguia, apontando aos moradores da mais importante metrópole europeia da época que o inverno que logo chegaria não diferiria dos anteriores. Os transeuntes envergavam pesadas roupas, pois, mesmo que as temperaturas ainda não houvessem despencado, um gelado vento cortava a cidade proveniente do Tamisa.

As dificuldades impostas pelo clima têm o poder de moldar os hábitos e as personalidades das pessoas. Os habitantes de regiões onde o sol aparece poucas vezes parecem trazer ares mais sombrios, talvez contagiados pelas próprias nuvens que quase sempre desfilam sobre suas cabeças. O frio exige alimentação mais calórica e torna seus habitantes de complexão robusta, ao mesmo tempo em que o trabalho, recurso que os ares gelados também parecem estimular, torna-se compromisso moral da população. Estranho como o clima age sobre o caráter de uma nação. Torna o povo mais sério ou galhofeiro.

A capital inglesa do início do século XX trazia seus ares aristocráticos, impulsionada pelo desenvolvimento industrial em franca expansão, impondo-se ao mundo como potência econômica e social. Assim como em séculos anteriores outras nações influenciaram os hábitos e costume social, chegara a vez da famosa ilha, além do Canal da Mancha. Grandes corporações financeiras ali tinham sua sede, o comércio mundial dependia do aval inglês. Seus braços se estendiam às colônias na América, África e Ásia. Em resumo, manter-se atualizado significava à época conhecer do que tratavam os ingleses.” (páginas 9/10)

Assim tem início a história contada na obra O testemunho dos sábios, de frei Felipe e psicografia de Rafael de Figueiredo. Em poucos parágrafos, como se pode constatar acima, toda a contextualização inicial da narrativa está delineada. Nesta Inglaterra irão se movimentar os nossos personagens.

Edouard Smith é um médico, inteligente e perspicaz. Casado com Elizabeth Clarkson, de uma tradicional família inglesa. Culta, além de falar francês fluentemente, estudara canto e piano e participava de diversos saraus familiares. O casal reside numa boa casa, onde a empregrada Gladys lhes servia.

Elizabeth tem a atenção chamada para a leitura dos tabloides circulantes à época, nos quais as notícias das reuniões mediúnicas vêm ao encontro da curiosidade popular.

Edouard é cético quanto ao assunto, e critica os estudos de François Marie-Gabriel Delanne e Charles Robert Richet – cientistas conhecidos então – sobre os fenômenos espirituais inexplicáveis pela ciência estabelecida.

Rupert Stewart, bem mais velho que Edouard Smith – e, como este, médico – tem pelo companheiro de profissão uma amizade intensa, no que é correspondido. Trabalham os dois no mesmo hospital. Não sabem ainda, mas essa amizade desenvolvida tão de pronto vem de reencarnações passadas e terá um papel primordial no futuro do jovem médico.

Fundamentais também serão John e Clara Robertson, incansáveis pesquisadores do que realmente acontece naquelas estranhas reuniões, nas quais o “sobrenatural” se manifestava.

Edouard é médium ele mesmo, e logo começam as manifestações fenomênicas por seu intermédio. Entretanto, seu ceticismo é duro de vencer:

“Atônito, sem saber o que fazer, Edouard sentiu certo receio. O que acontecia? Lembrou-se que já sentira impressões estranhas em sua primeira participação em uma sessão mediúnica. Estaria sendo vítima de um fenômeno mediúnico? Sentia-se chumbado à poltrona, todo seu corpo parecia dormir, entretanto, seus pensamentos se manifestavam em todo seu vigor. Sua lucidez parecia aclarada. De súbito, ouviu pancadas surdas, que estalavam e produziam ruídos em todos os lados da sala. Parecia que alguém oculto batia nos móveis e paredes.

Ele estava bastante impressionado, parecia que os Espíritos estavam decididos a convencer o jovem  médico de uma vez por todas. Após as batidas, passou a lutar contra a sensação que o dominava. Desejava que isso parasse. Sentia-se constrangido e com medo. As batidas se fizeram ouvir mais uma vez, dessa vez na parede atrás de sua poltrona.”

A partir da realidade dos fatos, o médico começa a estudar mais a fundo sobre tais eventos, compulsando os livros de Allan Kardec. Pouco a pouco, rende-se às evidências; espíritos de pessoas amadas, já desencarnadas, comunicam-se com ele.

Sua vida sofre diversas reviravoltas, ganha um mentor de nome Mariano; sua vida tem de ser refeita; explode a Primeira Guerra Mundial:

“Estava escrito com letras garrafais: Inglaterra está em Guerra. O texto da capa tomava todo o jornal. As alianças que vinham sendo contraídas ao longo dos últimos anos foram colocadas em ação. Inglaterra, França e Rússia declararam guerra ao Império Austro-Húngaro, acompanhado do Império Alemão e Otomano. Breve outras nações se agitariam no campo de batalha.

O assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando provocou uma reação do Império Austro-Húngaro, que decidira anunciar guerra contra os Sérvios um mês após o atentado. Faltava o pretexto, pois sempre há interesses econômicos e políticos velados por detrás das guerras. A Rússia reagiu e mobilizou armas para defender a Sérvia. França e Alemanha anunciam apoio aos seus aliados e mobilizam-se.” (página 334)

O conflito de escala mundial terá interferência direta na vida de Edouard e dificultará sobremaneira as constantes pesquisas e investigações sobre as atividades espíritas:

“Para o Espiritismo, a guerra trouxe repercussões negativas, visto que conseguiu desconstituir um movimento criterioso e de vigor incalculável para a afirmação dos ideais espíritas. Uma visão científica do Espiritismo  marchava a passos largos na Europa Ocidental, equiparando-se à visão eminentemente religiosa, que se desenvolveu mais tarde no Brasil. O pilar racional da Doutrina dos Espíritos sofreu profundo revés com a explosão de ambas as guerras mundiais.” (página 430)

Na verdade, muitos dos personagens envolvidos nesta trama são espíritos de uma reencarnação passada, na França, cujas vidas e ações já haviam sido abordadas no livro anterior, Do século das luzes, de autoria do mesmo frei Felipe, com psicografia de Rafael de Figueiredo.

O testemunho dos sábios é magnificamente escrito, com claríssima intenção de historiar os primórdios do Espiritismo. As informações são dispostas de maneira a conduzir o interesse do leitor, enquanto lhe são ministradas informações basilares, tanto no próprio corpo do texto, como nas notas de pé de página. É uma leitura extremamente proveitosa, mesmo para aqueles apenas simpatizantes das ideias espíritas, mas degustadores de dados históricos e que desejem saber algo mais a respeito da doutrina dos espíritos.

FIGUEIREDO, Rafael de; espírito frei Felipe. O testemunho dos sábios. Boa Nova editora.Catanduva, SP: 2014.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Sombras de um segredo, de Berenice Germano/Irmã Vitória

Berenice Germano é a médium piscógrafa desta obra. Como já resenhei outro livro mediado por ela nesse blog, Quando é preciso partir, não repetirei seus dados biográficos.

Sombras de um segredo é também um romance mediúnico de fundo histórico, já que a ação se passa na Espanha do século14, mais especificamente na região de Castela, ao sul de Madrid. Está em pleno andamento a luta entre muçulmanos e cristãos pelo domínio da Península Ibérica medieval. Os personagens principais desta trama são Dom Fernão – um perseguidor implacável do judeu Jacó e sua filha Raquel; Jacó é um homem bom, sempre disponível para ajudar os outros. A bela Raquel segue seus passos. Eles não conseguem entender os motivos pelos quais serão vítimas de uma verdadeira caçada. O conde Dom Felipe e a condessa Dona Constância, os filhos Augusto, Alejandro e Carlos formam a família de nobres do lugar. Entretanto, eles são completamente submissos às vontades de Dom Fernão – o porquê dessa submissão só será revelado quase no fim da narrativa.

Na ausência de Dom Felipe, a aldeia próxima ao castelo dos nobres citados acima é incendiada; Jacó é acusado de ter sido o autor do incêndio. Uma das evidências é apenas sua casa ter sido poupada ao fogo devastador de quase tudo. O bondoso judeu é obrigado, então, a fugir da aldeia, levando a filha consigo. O povo, diante da acusação, se esquece facilmente da ajuda que Jacó lhe dera. Tem início uma viagem cheia de perigos, em que a determinação de pai e filha é posta à prova, com Dom Fernão nos calcanhares. Nunca estarão sozinhos; espíritos velam pelos dois, tanto quanto possível. Há realmente um segredo terrível para a época; Jacó sabe de tudo e por isso ele é perseguido.

Eis um pequeno trecho do romance, página 60:

Dom Fernão era odiado na região. Com proteção do conde e de outros fidalgos, abusava do poder que tinha nas mãos e todos eram obrigados a servi-lo. Causava verdadeiro terror na vila. Raquel tremia só de pensar em sua figura truculenta, com a face marcada de varíola da infância, olhos opacos e perversos. À medida que o pai falava, ela se deixava levar pelas lembranças, até que não se conteve:

- Acho que foi bom sairmos da vila! Nossa vida estava muito complicada com dom Fernão rondando nossa casinha dia e noite. Tenho medo só de pensar na expressão de seus olhos. Prefiro morrer  a suportar as maldades daquele homem! A morte deve ser muito melhor.”

Para fugir à sanha de dom Fernão, terão de usar várias estratégias, entre as quais o disfarce da aparência:

Com os cabelos escurecidos e sem barba, o judeu parecia uns quinze anos a menos. Já Raquel, de cabelos escuros e curtos, com um gorro de lã, apesar da tez macia tinha a aparência de um garoto que ainda não chegara à adolescência; o traje masculino conseguia esconder suas formas arredondadas.”

Outros personagens vão entrando na história, como o capitão Álvaro, fiel a Alejandro, filho do conde Felipe. Ele e a jovem Raquel amam-se. Álvaro tentará de todas as maneiras dar segurança a Jacó e à filha. Ana, uma prima desse capitão, com quem os fugitivos viverão por um tempo; irmã Vitória, vinculada a um convento, constituindo-se numa espécie de protetora da Raquel. E, sob a influência dela, Raquel desperta o amor ao próximo.

Sombras de um segredo é uma obra bem escrita, com boa trama que nos prende a atenção até o final; os preceitos espíritas estão tratados de maneira condizente com a codificação. Enfim, uma boa leitura, tanto no campo do mais simples entretenimento (prazer estético em se ler um livro bem escrito), quanto nos esclarecimentos de como funciona as leis divinas, de acordo com a visão espírita.

GERMANO, Berenice; espírito irmã Vitória. Sombras de um segredo. Vivaluz editora espírita. Atibaia, SP: 2013.